Comentário SolarTemos que reconhecer que a fragmentação do saber é uma característica marcante da sociedade ocidental. Basta considerarmos a exigência, cada vez mais forte, pelos cursos de pós-graduação. A parte de que, sem dúvida, isso possa representar um avanço no conhecimento, também significa uma redução ou especificação do objeto de estudo.
Nesse processo de alta e refinada especialização vamos perdendo um caráter importante do saber: o caráter sapiencial. Trata-se de uma visão global, que não é necessariamente superficial. Pelo contrário, essa visão é, antes de mais nada, uma visão integradora. Isso se aplica tanto ao campo meramente técnico do saber, quanto ao social ou político. Quando entendemos o todo é possível valorar e hierarquizar positivamente as partes. Facilita uma tomada de decisão consciente e, consequentemente, mais ética.
Parece complexo que depois de tanta setorização queiramos que o professor do Fundamental II ou do Ensino Médio seja capaz de oferecer ao seu aluno uma abordagem interdisciplinar. No entanto, é urgente resgatarmos a visão global da realidade. Esse desafio é, antes de mais nada, uma demanda da própria realidade que, em si mesma, é polifacética. “A transversalidade e a interdisciplinaridade são modos de se trabalhar o conhecimento que buscam uma reintegração de aspectos que ficaram isolados uns dos outros pelo tratamento disciplinar. Com isso, busca-se conseguir uma visão mais ampla e adequada da realidade, que tantas vezes aparece fragmentada pelos meios de que dispomos para conhecê-la e não porque o seja em si mesma”, defende a Dra. Lenise Garcia, professora e orientadora do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências da UnB, onde trabalha com educação ambiental, ensino de ciências, educação a distância e formação de professores.
Nessa tentativa de resgate do sapiencial estão os Temas Transversais indicados nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental: ética, meio ambiente, saúde, trabalho e consumo, orientação sexual e pluralidade cultural. “Estes temas envolvem um aprender sobre a realidade, na realidade e da realidade, destinando-se também a um intervir na realidade para transformá-la”, completa Lenise Garcia.
O desafio da interdisciplinaridade e da transversalidade nos colégios assessorados pela Solar
As feiras Culturais organizadas pelo Colégio Catamarã, em São Paulo, são um momento muito concreto onde é possível o trabalho com eixos transversais. Temas como Água ou Cidade são trabalhados ao longo das diferentes disciplinas e o resultado do trabalho de sala é apresentado na Feira. Numa dinâmica muito positiva, os alunos não fazem trabalhos para a Feira, mas apresentam na Feira o resultado de um significativo processo de aprendizagem. As mesmas equipes de alunos são orientadas por professores de distintas matérias, enriquecendo, assim, a abordagem do tema.
Nas reuniões pedagógicas do início do ano os professores são convidados a analisarem em conjunto seus planejamentos de forma a construírem os pontos de interseção que facilitam ao aluno uma visão “mais real” da realidade.
Um estudo de meio sobre a Serra do Mar, descendo a Estrada velha de Santos é o momento para unir Matemática, Ciências e Geografia. Os professores não somente acompanham os alunos, mas interagem juntos, oferendo uma análise mais completa e integral: tempo de percurso, distâncias percorridas, altura das árvores, interação relevo e vegetação, índices pluviométricos, etc.
O projeto Trabalho & Lazer, levado a cabo pela Escola do Bosque-Mananciais, em Curitiba nasceu da demanda de um grupo de 10 alunas do 5º ano. Elas queriam ir todas juntas ao cinema e depois tomar um lanche, mas queriam conseguir isso sem pedir dinheiro aos pais. A professora regente viu nisso uma excelente oportunidade para trabalhar não só conceitos matemáticos, mas noções de trabalho, consumo, cidadania e trabalho em equipe.
Com o auxílio da professora as alunas organizaram um plano de negócios: comprariam balas e doces num supermercado, montariam pequenos kits e os venderiam durante a Mostra Cultural do colégio, com o dinheiro arrecado iriam ao cinema. Para isso pesquisaram o custo do cinema e do lanche. A partir dessas informações calcularam suas despesas e o valor do lucro. Cada aluna pediu um empréstimo de R$ 15,00 para os pais, com o compromisso de devolverem o dinheiro no final. Com o capital inicial compraram as balas e o material necessário para a confecção dos kits. As meninas montaram 300 kits, que foram vendidos por R$ 4,00. A venda durante a Mostra Cultural foi um sucesso. Por fim, as meninas foram ao cinema, tomaram um bom lanche e devolveram aos pais o valor do empréstimo. Como ainda havia um saldo em caixa, decidiram comprar cordas de pular e bolas para os colegas, que não participaram do projeto, brincarem no recreio.
A interdisciplinaridade é sem dúvida um desafio na prática docente brasileira. No entanto, talvez o caminho para um saber mais integrado, de caráter sapiencial, passe também por pequenas ações no dia a dia das nossas escolas: uma equipe pedagógica (coordenadores e professores) que trabalhe em parceria, professores abertos às expectativas dos seus alunos. Em outras palavras, saber ouvir e falar e não ter medo de ousar.
Brasil perde o desafio de integrar as disciplinas
Alguns projetos, porém, estão conseguindo driblar o tradicionalismo e ligar saberes de diferentes áreas
Fonte: Gazeta do Povo (PR)
País símbolo da educação, a Finlândia causou frisson quando foi anunciada, em março deste ano, como a primeira nação a abolir as disciplinas da grade escolar. O governo finlandês desmentiu a história. As disciplinas continuam. Mas os projetos que incentivam a interdisciplinaridade serão obrigatórios em 2016.
“As práticas colaborativas nas salas de aula, em que os alunos trabalham ao mesmo tempo com professores de matérias diferentes baseados em projetos temáticos será o caminho do futuro da educação finlandesa”, diz a diplomata Raisa Ojala, da Embaixada da Finlândia no Brasil.
Por aqui, esse processo vive sua fase embrionária. Na última década e meia, a legislação avançou. As Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (DCNEM) de 1998, por exemplo, estabelecem a interdisciplinaridade como um dos cinco “princípios pedagógicos” estruturadores dos currículos dessa etapa escolar. Identidade, diversidade, autonomia e contextualização fecham o time.
Na prática, as disciplinas pouco dialogam. “Vemos um sistema extremamente duro e tradicionalista, que está incrustado em quem nós somos”, opina a professora do Instituto Federal do Paraná (IFPR) Maristela Gabardo, que em 2014 passou cinco meses na Finlândia, pelo projeto Professores para o Futuro.
Considerado o “centro do saber”, o professor tem pouco espaço para errar e, portanto, de experimentar. Os alunos, por sua vez, não desenvolvem sua autonomia, critica Maristela. Para um ensino interdisciplinar, o grupo precisa sair de sua “zona de conforto” e estar preparado para trabalhar com o erro.
Ao aprender em compartimentos, muitas vezes o estudante tem dificuldade de significar um conteúdo na sua realidade. Mudar isso passa por uma nova mentalidade dos professores, o que inclui novas metodologias nas licenciaturas, no ensino superior.
Um projeto interdisciplinar exige diálogo também entre os professores. Além disso, é preciso preparar aulas que levem em conta os caminhos percorridos em sala de aula. “Mas os professores trabalham muito, têm uma sobrecarga de trabalho grande”, critica a docente do IFPR. A Lei do Piso Nacional do Magistério, de 2008, estabelece que um terço da jornada deve ser cumprida fora da sala de aula, na chamada hora-atividade.
O tempo também é um entrave para desenvolvimento de projetos integrados entre as disciplinas. Para isso, o ensino integral é uma arma fundamental. Mas no Paraná a modalidade abrangeu apenas 9,22% das matrículas do ensino básico público, em 2014. No Brasil, a média foi de 15,21%, segundo dados do Censo Escolar, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC).
Na Finlândia
Chefe do departamento de currículo finlandês, Irmeli Halinen elenca pontos centrais da reforma educacional:
Maior foco em competências transversais e trabalho com diferentes disciplinas.
Disciplinas ainda terão um importante papel no ensino e aprendizado.
As disciplinas terão fronteiras menores entre si e uma maior colaboração prática uma com a outra
Toda disciplina vai trabalhar para desenvolver as áreas de competência
Práticas de sala de aula colaborativas serão realizadas em estudos multidisciplinares, estruturados em projetos, em que muitos professores podem trabalhar com qualquer número de alunos simultaneamente.
Aprender é uma habilidade que deve ser promovida sistematicamente.
Colégios testam formas de ligar conhecimentos
Naiady Piva
Modelo de educação para o mundo, o sistema finlandês estabelece dois modos de colocar a interdisciplinaridade em prática. Um é a resolução de problemas, outro é com projetos (ambos chamam PBL, do inglês project based-learning e problem based-learning). No Paraná, instituições de ensino lutam para encontrar seu próprio formato de integração entre as disciplinas.
Desde 2005 o Colégio Sesi trabalha com uma metodologia diferenciada no ensino médio, em que os alunos trabalham com uma pergunta norteadora a cada bimestre. Alunos das três séries se matriculam em oficinas como panificação ou robótica. Em grupos, eles desenvolvem um projeto, que é trabalhado ao longo dos dois meses. As 15 disciplinas são tanto tradicionais (Português, Matemática, etc.) como diferenciadas, como empreendedorismo.
No campus central do Instituto Federal do Paraná (IFPR), em Curitiba, os alunos do ensino médio integrado de Informática deram seus primeiros passos para uma interdisciplinaridade em 2015. No primeiro bimestre, a professora de Espanhol Maristela Gabardo fez um trabalho de conscientização para seus alunos constituírem autonomia. Outros professores fizeram o mesmo, em outras turmas. A partir deste mês, as turmas começam a se integrar.
No Colégio SEB Dom Bosco, os alunos do 6.º ano do fundamental em diante e do ensino médio trabalham ao longo de 2015 o tema “luz”, conforme indicação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). No primeiro bimestre, foi trabalhado em História e Geografia. No segundo, será em Física e Matemática.
A escola mantém também outro projeto, em que uma aula por semana é dedicada a um projeto construído por alunos em parceria com os professores. “Há uma inversão de papel, você não trabalha a disciplina, você trabalha com a disciplina. A disciplina passa a ser uma ferramenta para desenvolver competências”, explica Gil Vicente Moraes, diretor da unidade Batel do colégio.