Eu, o Outro e a Linguagem

Uns versos de uma canção popular, que já começa a ter a pátina do tempo, exaltam, com a simplicidade e a dignidade de uma antologia literária, o outro e a linguagem:

“Palavra não foi feita para dividir ninguém/ Palavra é a ponte onde o amor vai e vem”.

A alma exprime-se pelo corpo e, especialmente, pela linguagem, até porque o homem, como ser social, precisa de sinais e símbolos para se corresponder com os outros. Eis mais duas dimensões da pessoa: a transcendência e a comunicação.

Nós falamos. Alguns falam além da conta, ébrios ou não. Outros falam sozinhos. Outros dormindo. Há quem fale com as paredes. Minha filha de cinco anos deve sofrer de logorréia: ela fala ininterruptamente de um crepúsculo ao outro. Shakespeare saiu-se com esta pérola, a de que “sua fala é um banquete fantástico em que abundam os pratos esquisitos” (Muito barulho por nada, II/3).

Comunicamo-nos com os outros de várias formas. Quanto não diz um singelo olhar entre esposos, um sorriso maroto levemente esboçado pelo filho travesso, um silêncio rotundo num velório, um gesto apaixonado de um namorado ou mesmo um aceno afetuoso ou ofensivo.

Inúmeras são as sendas da linguagem: as “pontes” que alcançam os outros, uma via de mão dupla onde trafegam as alegrias e as dores, os ódios e os amores, as certezas e hesitações, as esperanças e ilusões. A linguagem tem sido objeto de uma progressiva atenção por vários ramos do saber desde o começo do século passado.

Alguns chegam a definir o homem exclusivamente como um ente que fala, com a tendência a unir pensamento e linguagem, estudando a dimensão intelectual humana a partir desta relação. A razão abstrata e a lógica científica, tidas como as linguagens humanas por excelência, passaram a ter a companhia das linguagens cotidianas do “mundo da vida” (Husserl e Habermas), pois a fala é mais ampla que a ciência, já que abrange os âmbitos do trabalho e da convivência social e cultural.

Assim, a linguagem é um método humano, não instintivo, de comunicar ideias, emoções e desejos por meio de símbolos convencionados. E sua forma é o pensamento, porque um falar sem pensamento não comunicada nada, como algumas obras de arte pós-moderna. Falar e pensar acontecem ao mesmo tempo, mesmo naquelas situações em que falamos sem “pensar” antes…

O homem não é uma pedra. Possui uma interioridade a transmitir e tem o conveniente de que alguém recebe aquilo que é expressado. Aqui entra o outro. Por ser pessoa, o eu necessita do encontro com o tu. Os filmes infantis comprovam isso. Os selvagens de ficção, como o Tarzã e o Mogli, só sobrevivem em seus contos porque eles falam com os animais personificados.

A pessoa, sem o próximo, acabaria por se frustrar radicalmente, porque não teria um destinatário. Aquela interioridade não seria transmitida. Seria uma vida estéril, convertida numa sombra entre os viventes. No mundo grego, isso era a pena de desterro: perder a pátria, ir para outro lugar, com outra língua e outros costumes, era pior que morrer, porque era, de certa forma, uma morte em vida. Hoje, o desterro, em muitas sociedades, é composto por uma multidão de solitários…

A pessoa, ao longo da vida, precisa de outras para aprender a reconhecer-se a si mesma, desenvolver sua vida e alcançar sua plenitude. Originariamente, a expressão “pessoa” significava a máscara do ator no teatro, o rosto do representado. O outro é sempre um rosto que se mostra para nós.

Como uma criança que aprende a conhecer o rosto da mãe antes de seu próprio rosto. O sorriso materno é o seu primeiro contato com a realidade. “Dos nossos planos é que tenho mais saudade/ Quando olhávamos juntos na mesma direção/ Aonde está você agora além de aqui dentro de mim”, já cantava o poeta de minha geração.

Muitos estudiosos sérios, como John Rawls, concebem uma sociedade ideal como aquela na qual todos dialogam livremente. Todos, isto é, o eu e o tu. Dialogam, ou seja, falam. Quando uma estrutura, como a família ou a sociedade, tem problemas, muitas conversas são necessárias para que as pessoas entrem num consenso. Porém, não basta reunir-se. Dialogar é compartilhar a interioridade, abrir-se ao semelhante, estar disposto a escutá-lo. Com respeito à divergência (outro), é o que (eu) penso (falo).


ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo – Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

Fonte: http://www.portaldafamilia.org.br/artigos/eu-o-outro-e-a-linguagem.shtml

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